sexta-feira, 12 de janeiro de 2018

A INTERTEXTUALIDADE NA POÉTICA DE ANGELA GUTIÉRREZ - Túlio Monteiro*


1- INTRODUÇÃO

Imaginemos que tudo o que lemos, ouvimos, vimos e até produzimos no nosso cotidiano já possa ter sido dito, escrito e produzido antes. Consideremos que nossos discursos, quer sociais, políticos ou acadêmicos, apesar das conotações bem particulares que lhes damos, estão repletos de concepções e influências de um infindável número de pessoas e culturas. São conhecimentos adquiridos por anos a fio através de nossos pais, amigos, parentes, livros, filmes, viagens que fizemos. Será difícil admitirmos que nossa individualidade não é, por assim dizer, tão individual como imaginávamos e que nosso conhecimento de mundo, absorvido ao longo de anos de aprendizado árduo nos dá, no máximo, sutis diferenciações entre nós e o resto de nossos semelhantes, nos fazendo chegar à dificílima constatação de que não somos tão “inéditos” quanto pensávamos ser.

Se entre nós é assim que se processam as diferenciações, o que dizermos da literatura, tão rica em conhecimentos e possibilidades, mas tão infinitamente menor que a natureza humana? Analisando-se o problema por esse prisma, torna-se impossível se esperar que haja textos completamente originais, livres de interligações com outras produções de escrita ou mesmo com o contexto sócio-político-cultural em torno do qual eles giram.

Foi seguindo esta linha de raciocínio que nos anos 1960, a crítica francesa Júlia Kristeva, fundamentada nos conceitos e estudos deixados pelos formalistas russos Mikhail Bakhtin e Tinianov, concebeu a noção de intertextualidade: “Todo texto é absorção e transformação de uma infinidade de outros textos”. Naquele momento, Kristeva concedia formalização teórico-crítica à noção do dialogismo de Bakhtin, real precursor da intertextualidade tal como ela é conhecida hoje.

São diversas as modalidades de intertextualidade. Porém, por uma questão de adequação desta pesquisa ao romance que ora analisaremos, nos deteremos apenas nos quatro tipos que podem ser nele detectados:

EPÍGRAFES e/ou CITAÇÕES: processos onde um autor cita de forma literal, no corpo de seu romance ou trabalho poético, trechos selecionados de outras obras, sejam estas literárias ou não.


ALUSÃO: O autor faz referências a uma ou mais obras, literárias ou não, sem, no entanto, valer-se de citações literais das mesmas, diferencialmente como ocorre no processo intertextual acima.

C- VERBALIZAÇÃO: Consiste na passagem de um sistema significante não verbal para o verbal. As descrições de obras de arte já consagradas (esculturas, pinturas dentre outras), são bons exemplos desta técnica intertextual.

D- PARÁFRASE e/ou PARÓDIA: Na PARÁFRASE, o autor reescreve ao seu modo, determinados trechos de uma outra obra, seja ela literária ou não. Já no caso da PARÓDIA, o sentido desta reescrita é voltado para a ironia, para uma crítica ao texto original.

Fundamentados nas informações acima, decidimos que seria nesse âmbito o enquadramento da presente pesquisa.

Inicialmente, localizaremos e listaremos os tipos de intertextos contidos no romance O Mundo de Flora, especificando, logo em seguida, as fontes originais destes mesmos intertextos.

Para um melhor entendimento das propostas relacionadas no parágrafo anterior, sugerimos uma breve apreciação do gráfico a seguir:


1º MOMENTO: Localizar os intertextos contidos n’O Mundo de Flora;

2º MOMENTO: Listar por ordem de categorias, os tipos de intertextos existentes no referido romance;

3º MOMENTO: Especificar as fontes originais dos intertextos detectados.


2 – A INTERTEXTUALIDADE NO ROMANCE “O MUNDO DE FLORA”

É preciso ser ignorante como um asno, para jactar de dizer uma única palavra que ninguém neste mundo tenha dito antes de nós. ( Alfred de Musset ).

2.1 – EPÍGRAFES e/ou CITAÇÕES

Página 26: “ Os olhos maiores que a barriga “
 
Sinônimo de gula. Ditado popular muito utilizado nas regiões norte e nordeste do Brasil, para referir-se a alguém que come além do necessário.
 
Página 26: “ Pra morrer é só tá vivo. “
 
Ditado popular brasileiro.

Página 44: “ Um, dois, três lampiões acende e continua
outros mais a acender imperturbavelmente
à medida que a noite aos poucos se acentua
e a palidez da lua apenas se pressente”
 
Estrofe do soneto ‘O Acendedor de Lampiões’, do alagoano Jorge de Lima.

Página 48: “Entrou pela perna do pato, saiu pela perna do pinto, o senhor-rei mandou dizer que contasse mais cinco”
 
Frase com que se costumava terminar histórias infantis lidas ou contadas às crianças de algumas décadas atrás, sendo esta hoje uma prática muito rara.

Página 51: “Flora morena se aborrecia. Methodo Stott. Série de três livros. Para ensinar a ler, escrever e falar em língua ingleza de accordo com os modernos preceitos pedagógicos para o aprendizado das línguas vivas. Por José Stott, Lente Cathedrático do Gymnasio do Estado de S. Paulo. Estado de S. Paulo, Brazil. Livraria Francisco Alves & Cia. Rua do Ouvidor, 286 - Rio de Janeiro.”

Descrição literal da capa do livro ‘Methodo Stott’ de 1911, muito utilizado pelos estudantes da época para o aprendizado da língua inglesa;

Página 64: 
“ O meu boi morreu
Que será de mim?
Manda buscar outro
Lá no Piauim.”

Trecho de uma música popular brasileira, de Eduardo Neves e Bahiano (1916).

Página 124: “ Ouvi ao seu lado as palavras finais: ‘Eu vos dei a minha vida. Agora vos ofereço a minha morte. Nada receio. Serenamente dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar na História.’ “

Trecho da carta-testamento que o Presidente Getúlio Vargas endereçou à nação brasileira, pouco antes de suicidar-se nos em meados do século 20.

Página 136: “ Finge zanga, não, flô. Toda menina que enjoa da boneca é sinal que o amor já chegou no coração.”

Trecho da música ‘O Xote das Meninas’, de Luíz Gonzaga e do cearense Humberto Teixeira;

Página 137:
“ Meu ser evaporei na lida insana
No tropel das paixões que me arrastam
Ah...”
 
Versos do poema ‘Contrição’ do poeta português Manuel Maria Barbosa du Bocage;


Página 141/142: 
“ O homem da vassoura vem aí
Não sei por onde vou com a família
Eu só queria, eu só queria
Ver o homem da vassoura em Brasília
Ai, lá vai ser muito legal
Em Brasília vai ter outro carnaval
Ai, lá vai ser muito legal
Em Brasília vai ter outro carnaval.”

Aqui a autora faz referência à marchinha carnavalesca composta para a campanha presidencial de Jânio Quadros Quadros nos anos 1950. Jânio, usou a vassoura como símbolo de sua campanha para referir-se à limpeza que ele se propunha a fazer na política brasileira. Por conta disso, ganhou a alcunha de homem da vassoura.

Página 145: “ Livros? Relendo o Grande Sertão, que tanto me fascinou. Estou nas páginas finais. ‘Diadorim, Diadorim, oh, ah, meus buritizais levados de verde.’ ” .
 
Trecho do romance Grande Sertão: Veredas, do escritor João Guimarães Rosa;


Página 149:
 “ Pra ver a banda passar
cantando coisas de amor.”
 
 Trecho da música “A Banda”, do cantor e compositor Chico Buarque de Holanda.


Página 158: “ Nel mezzo del cammin...”

Verso d‘A Divina Comédia’ de Dante Alighieri.


Página 158: “ Lembro que papai tinha um livro - A Chave d’Os Lusíadas. Com ele nas mãos, ficava fácil entender ‘as armas e os barões assinalados.’ “.

Versos d‘ Os Lusíadas’, do escritor português Luiz de Camões;


Página 178: “ - Basta, guerreira sem lustre! Assaz suaste.”

Último processo intertextual do livro. Nele a autora cita um trecho literal do poema ‘I Juca-Pirama’, de Gonçalves Dias.


2.2 – ALUSÃO:

Página 21: “ Vai, Carlos”
Alusão a um fragmento de verso do ‘Poema de Sete Faces’, do poeta mineiro Carlos Drummond de Andrade.

Página 59: “ Há lembranças que doem. Ou amargam que nem jiló?”
Alusão à música “Saudade”, de Luíz Gonzaga.

Página 59: “Quasímodo! Ele era Quasímodo e me olhava como Quasímodo olhara Esmeralda”.
Alusão às personagens do Livro “O Corcunda de Notredame”.

Página 85: “ Narizinho ria de mãos dadas com Emília. Vamos, Flô. Toma o pó, Flô. O pó de Pirlimpimpim.
Do alto, eu via o sítio, as velhas mangueiras e pensava que queria voltar para a mamãe.
Mas queria também continuar voando, sem medo. Tudo tão bom... E a Emília ria. Vem, boba.”

Alusões ao livro ‘O Sítio do Pica-Pau-Amarelo’ do escritor Monteiro Lobato.

Páginas 86/87: “ Um dia encontrei na estante do vovô uma coleção de livros encapados de pelica amarela. Eram todos de Alexandre Dumas. Diu-má, me disse o vovô.

Aí, com d’Artagnan servi ao Rei e à Rainha da França. Odiei o Cardeal Richelieu, fui amiga de Athos, Porthos e Aramis (Atôs, Portôs e Arramis). Cavalgava com eles de Paris ao Port de Calais. Frequentava tavernas e bebia em copos de estanho.”

Alusões nítidas da autora ao livro ‘Os Três Moqueteiros’, do francês Alexandre Dumas;

Página 131: “ Usaria luvas brancas, farda de gala e levantaria bem a cabeça, orgulhosa de levar o símbolo augusto da paz.”

A autora faz alusões ao desfile de sete de setembro e ao verso do Hino à Bandeira do Brasil: “Salve símbolo augusto da Paz”.

Página 158: “Até parece sinal de velhice. Como que o velho dizia Na voz do velho Casmurro? Atar as duas pontas da vida?
As referências aqui feitas pela autora remetem-se a D. Casmurro, do mestre, como bem ela evidencia, Machado de Assis.

Página 158: “Ariadne, quero conduzi-lo neste labirinto?”

Alusão ao mito grego do Minotauro. Conta a lenda que a bela Ariadne, para salvar seu amado Teseu das garras do minotauro que habitava o labirinto de Creta, deu-lhe um novelo de lã. Desenrolando-o à medida que penetrava no labirinto, o herói seguiu o fio para dele sair após matar o monstro.

Página 178: “ Já me sinto voando. Emília, o pó, para onde me levará?
Lá...os corpos retorcidos do Inferno de Dante?
A ará já não repetirá seu mavioso nome?
Neste excelente intertexto, Angela Gutiérrez referencia-se consecutivamente a três obras literárias diferentes. O desenvolvimento deste parágrafo, evidencia, na bagagem literária da autora, um amplo domínio de conhecimento e aplicação das técnicas intertextuais propostas por Júlia Kristeva.

Na primeiro linha, novamente temos “O Sítio do Pica-Pau-Amarelo’’, de Monteiro Lobato; na segunda, outra vez “A Divina Comédia” de Dante e, na terceira, o romance “Iracema”, de José de Alencar.

2.3 – VERBALIZAÇÃO:

Partindo do princípio de que a linguagem cumpre um papel estritamente social, nós, posicionando-nos na qualidade de interlocutores, ao ouvirmos e/ou lermos acerca de algo, constatamos que essa função social foi realmente cumprida, executada. Imergindo um pouco mais além no tocante a essa análise, esse caráter coletivo da linguagem faz-nos crer que um discurso, independente da maneira que for proferido (verbalizado, não verbalizado, dramatizado, enfim), manifesta-se como produto de outros discursos, ou seja, parte da enunciação (de quem o proferiu) o fato de que o sujeito (no caso, o enunciador) se apoia, subsidia-se em algo já dito, já falado, já conhecido. Vale afirmar, dessa maneira, que ele faz disso um objeto maior para, por meio do posicionamento que assume, reiterar, refutar (debater), reafirmar, reformular, entre demais procedimentos. Vejamos exemplos:

Página 16: “No início do corredor, por uma porta costumeiramente entreaberta, via, de relance, a sala de visitas e a biblioteca. Cadeiras antigas com assentos de brocado e o piano de cauda recobertos por longas capas brancas. Imensas estantes de madeira esculpida e portinholas de cristal, repletas de velhos livros encadernados de couro. “Na parede, com seus tons pastéis, seus olhos de mistério e seu sorriso indecifrável, uma cópia fiel da Monalisa de Leonardo da Vinci.”

2.4 – PARÁFRASE e/ou PARÓDIA:

Página 85:
“ - Barbosa, e ele só roubava dos ricos?
Flô, isso eu não posso garantir. Vi ruma de gente se queixando, e era rico, e era arranjado, e era pobre. Pode que uns se queixavam de barriga cheia.

Pra mim, Barbosa, ele tirava dos ricos para dar aos pobres.
Flô, testemunhei isso, não.
Mas que era corajoso e valente...
Lá isso era.”

Aqui, a autora utiliza-se da técnica de paráfrase de forma bastante hábil. Em discussão com o amigo Barbosa, Flora faz questionamentos sobre a vida do cangaceiro Lampião, comparando-o à lenda britânica de Robin Wood, o bom ladrão que roubava dos ricos para dar aos pobres.

3 - CONCLUSÃO
Ao final de nossa análise, constamos inúmeros processos intertextuais n’O Mundo de Flora. Nele, Angela Gutiérrez, além de utilizar-se habilmente das técnicas propostas por Júlia Kristeva, lança mão, ainda, de uma escrita propositadamente fragmentada, denotando o emprego de uma outra técnica amplamente utilizada pelos romancistas atuais: o Fluxo da Consciência, de Robert Humphrey.

Com um estilo suave de narrativa, a autora introduz o leitor num mundo repleto de reminiscências fragmentadas, demonstrando grande habilidade na utilização conjunta das técnicas de Intertextualidade e Fluxo da Consciência, sem jamais perder o fio da trama. Esta habilidade pode ser facilmente constatada quando encadeamos os processos intertextuais de forma cronológica. Ao fazermos isso, verificamos que eles caminham sempre em direção ao processo de crescimento e amadurecimento da menina Flora, personagem principal da obra. Se aprofundarmos mais ainda esta análise, poderemos descobrir as datas em que situam-se as intertextualizações, conseguindo através delas, montarmos o quebra-cabeças espaço-temporal proposto pela autora.

Contudo, a proposta maior deste estudo foi localizar, listar e especificar o maior número de intertextualidades encontradas no romance, não configurando-se, portanto, objetivo do presente estudo o aprofundamento analítico ao qual acima nos referimos.

Por fim, é necessário evidenciar que, como todo estudo acadêmico sério, a presente análise não teve a pretensão de esgotar a catalogação dos processos intertextuais n’O Mundo de Flora. Até mesmo porque, em se tratando de um estudo voltado para a intertextualidade, esgotar as fontes de pesquisa torna-se ato quase impossível, uma vez que cada leitor possui seu próprio “acervo” cultural, o que evidencia a descoberta de inúmeros novos processos intertextuais, dependendo, como já dissemos, do embasamento cultural de cada novo leitor que prestar-se à leitura do romance em questão.

A intertextualidade fala uma língua cujo vocabulário é a soma dos textos existentes. Basta uma alusão para introduzir no texto centralizador um sentido, uma representação, uma história, um conjunto ideológico, sem ser preciso falá-los. O texto de origem está lá, virtualmente presente, portador de todo o seu sentido, sem que seja necessário enunciá-lo. Como diz Nancy Maria Mendes “A identificação da intertextualidade depende da extensão de leitura que se tenha. Quanto mais lermos, mais nos será possível perceber a presença de uns textos em outros e maior será a nossa compreensão de leitura.”

NOTAS
1. KRISTEVA, Júlia. Ensaios de Semiologia. Trad. Luiz Costa Lima, RJ, Ed. Tijuca, 1971.
2. GUTIÉRREZ, Angela. O Mundo de Flora. Fortaleza, CE, Ed. UFC, 1990.
3. GUTÉRREZ, Angela. Op. Cit.
4. HUMPHREY, Robert. O Fluxo da Consciência. S.P., McGraawhill do Brasil, 1976.
5. MENDES, Nancy Maria. Intertextualidade: Noções Básicas. In:Teoria da Literatura na Escola (org.), UFMG/FALE/ depto. De Semiótica e Teoria da Literatura, Belo Horizonte, MG, 1992.
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*Túlio Monteiro - escritor, biógrafo, pesquisador, revisor, ensaísta e crítico literário, publica todas as segundas aqui no Evoé! Leia também Literatura com Túlio Monteiro.

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