quinta-feira, 28 de dezembro de 2017

A interrogação para mais adiante... - Chico Araujo*



Uma verdade: sem temor ele construiu sua narrativa.
Mas ela não se revelou de imediato. Essas coisas de falar, dizer exatamente o que se pensa, nem sempre são muito fáceis, de fluidez tranquila. Às vezes um discurso se organiza bem na cabeça, no entanto não se projeta facilmente.
Acrescento a você que naquele momento em que olhava para a mulher, mesmo acreditando já estar com toda sua fala resolvida em sua cabeça, Arguto, em verdade, ainda refletia, refletia, refletia... e, mesmo sem querer, afligia sua mulher, que agora só aguardava a fala do marido.
Por onde começo a contar essa história?
Eu, por minha observação já de há algum tempo, já sabia não ser apenas por intuição que a esposa compreendia haver algo diferente na vida deles. O marido estava com aquela cara fechada já conhecida, olhar meio que distante, mesmo que fitado nela, respiração alterada, movimentos descontínuos e alternados nas pernas, lentidão no ato de beber o café. Esses sinais nunca se somavam para boas novas. Isolados, não preocupavam; conjuntos, em geral faziam arrebentar o sossego, fragmentando-o em tantos pedaços que quase não se conchegavam depois em vantagem do conserto.
Pelo peso carregado nos passos que dera minutos antes até sentar-se na poltrona, pelo semblante fechado, pelo silêncio, por olhar para ela com visão meio turva, sem mesmo vê-la, ele já alcançara a consciência de que certamente ela já notara a tempestade com muitos trovões em sua cabeça. Ela, silente e súplice, olhava-o, buscando vê-lo. Ele precisava dizer algo.
Por tanta vida juntos, ele já sabia as estratégias a serem postas em prática em situações como aquela: antes mesmo de entrar em casa, chegar-se à esposa, olhá-la com olhar firme, sincero, dar-lhe um selinho – já cumprira essa sequência; entrar na casa, sentar-se no sofá, receber um copo de água gelada e uma xícara de café fresquinho. Depois de sorver aqueles carinhos, só havia uma coisa a ser feita: falar.
Naquele momento, porém, Arguto realmente não sabia por onde começar o relato para a mulher a respeito de tudo o que acontecera naquele dia, quem sabe até um pouco do que soube a mais de toda uma situação ainda incompreendida em sua totalidade e alcance, todavia inexorável. Era visível seu desconforto e seu cansaço. Terminou de tomar o café e ficou olhando a mulher um tempo, sem nada dizer – dois silêncios.
A tensão a crescer entre eles era já em sensação intensa, quase visível, bem perto do palpável. Arguto respirou fundo, pontuando sua aflição, mas não se demorou no silêncio:
- Preciso tomar um banho – declarou, enfim. Precisava pensar um pouco mais, até para compreender melhor, antes de falar – assim refletiu – toda a situação que lhe envolvera desde o início da manhã. Levantou-se e foi-se, deixando a mulher na mudez, dentro de pensamentos.
A esposa, Sofia, ainda permaneceu, alguns minutos, sentada, silente, atenta. Intranquila, dignamente esperou o tempo certo da narrativa do marido. Ela também sabia que nada acontece antes do momento de acontecer.
Quando voltou do banho, Arguto viu a mulher sentada no mesmo lugar, em posição e silêncio que poderia jurar serem os mesmos do instante em que se ausentara; mas era apenas impressão. Ela se levantara, com toda a certeza, pois de sobre a mesa da cozinha se espalhava pela casa o cheiro bom e fumegante da sopa de legumes com carne moída que somente ela conseguia fazer.
Foram os dois para a cozinha e ele serviu para si o primeiro prato fumegante. Ela não o quis acompanhar naquele instante. Queria saber dos acontecimentos. Ele, entre uma colher e outra de sopa, foi dizendo o que sabia, porque observou, porque lhe contaram. Sem a tranquilidade desejada, enfim, ele apresentou sua narrativa.
- As coisas mudaram muito no trabalho de semana passada para hoje. Mudaram de um jeito que eu não consegui ainda entender tudo. A oficina não existe mais, foi fechada. O pessoal que trabalhava comigo não sei para onde foi, mas tô achando que houve demissões, de alguns, pelo menos; outros talvez tenham sido aproveitados em outro setor, mas não tenho certeza. Não vi mais ninguém hoje. Eu fui mantido, em um novo cargo, com mais responsabilidade, passando a ter contatos com pessoas de fora da empresa. Meu emprego está garantido, pelo menos por enquanto. Não entendi ainda porque me puseram nessa nova função e não sei se terei condições de ficar nela.
Arguto foi detalhando para sua companheira de tantos anos as alterações em acontecimento na empresa e revelando sua aflição quanto às incertezas. Ela escutou tudo no mais perfeito silêncio, na mais completa atenção.
Acrescentou ainda ter sabido do caso de um rapaz de outro setor, muito comprometido, dedicado, acostumado a fazer horas extras sem criar problemas que foi dispensado porque o chefe dele, novato na empresa, não gostava do jeito como ele trabalhava. Na hora da dispensa, o chefe teria dito ao rapaz saber que diziam ser ele muito competente, mas que, na qualidade de chefe, avaliava-o como alguém lento, desconcentrado, muito conversador, que demorava muito na hora do almoço, mesmo já tendo encerrado a comida no prato. Para o chefe, isso era uma soma de falhas. Não lhe interessava trabalhar com alguém que tivesse essas características. Por isso a demissão. A parte final da conversa teria assim transcorrido:
- O senhor está me demitindo por essas coisas que acabou de me dizer? São mesmo motivos para demissão?
- Para mim, são.
- Vou fazer de conta que o senhor tem a mais completa razão no que está dizendo. Mas pergunto: o senhor não poderia me ter falado sobre esses meus "defeitos" antes, até para me dar chance de me corrigir?
- Não é do meu estilo de gestão agir dessa maneira.
- O senhor, então, não acha que precisa de alguma capacitação sobre como manter as relações interpessoais? Talvez algum curso de recursos humanos? Algum treinamento sobre gestão de pessoas?
- Prometo que pensarei sobre isso. No futuro. Por agora, recomendo que passe pelo setor pessoal para formalizar sua dispensa.
Arguto contou tudo isso e se calou.
A esposa Sofia o ouviu na mais absoluta mudez. Ao entender haver terminado aquela fala angustiada, levantou-se, foi ao fogão, serviu-lhe um pouco mais da sopa reparadora. Antes de sentar-se novamente frente a ele, passou-lhe a mão pelos cabelos, num gesto de carinho acolhedor.
- O mundo, Arguto, como nós o conhecemos, deixa de existir a cada novo segundo; ele está se dissolvendo. Como exatamente ele vai ser, não podemos saber hoje.
- Eu soube também, Sofia, no finalzinho do expediente, quando já estava na saída do prédio, quase na calçada, de outro caso estranho, com outro rapaz que também nunca vi, nunca trabalhou comigo. Ele recebeu uma proposta de trabalho lá num setor da empresa que trabalha com a propaganda dela. Era um contrato de trabalho por uns dois meses ou três. Estavam precisando de gente como ele lá porque aumentou a necessidade de maior propaganda dos produtos da empresa. O rapaz aceitou o trabalho, exigindo todos os direitos pertinentes, salário compatível com os trabalhos a serem feitos, tudo mesmo que tivesse direito. Disse que começaria já na manhã seguinte. O diretor de lá que falou com ele disse ser necessário ele começar a trabalhar de imediato, mesmo já sendo de noite, porque era muito serviço mesmo para ser feito. Aí o rapaz disse não ser mesmo possível, já eram sete da noite e ele já tinha compromisso. O diretor insistiu dizendo preferir que começasse o serviço naquela noite mesmo, que tinha pessoal já em hora extra, mas que precisava da experiência dele, do conhecimento dele, porque poderiam fazer com que os outros trabalhassem com maior rapidez. O rapaz não aceitou mesmo e somente começou no dia seguinte. Aí ficou tudo certo naquele tempo, durante os três meses foi tudo dentro do acordo. Nada a mais, nada a menos. Quando o tempo contratado estava acabando, veio novo convite para ficar mais um tempo, pois a empresa tinha melhorado muito com ele lá.
- E ele ficou?
- Ficou porque disseram que havia necessidade do trabalho dele que era muito qualificado. Ele aceitou continuar lá por que teve a sensação de que estivesse sendo valorizado naquilo que sabia fazer de melhor. Mas se enganou. Nos meses seguintes, parece que mais uns três, o que foi combinado antes foi esquecido pela empresa. O rapaz hoje tá brigando na justiça pra receber os outros três meses e outros direitos que ele acha que tem. A empresa tá dizendo que não deve nada a ele.
- E quem tem razão?
- Não sei. Sei só que me contaram isso. Parece que isso tá acontecendo, sabia? Sabia? Tá acontecendo. Não é coisa que esteja só em novela ou filme. Está acontecendo na vida real. Preste bem atenção ao que tô dizendo: Tá acontecendo! É real.
- Tudo isso está lhe angustiando.
- Por mim e por muitos outros. Não saber o que acontecerá no futuro é algo natural. Não ver perspectiva quanto a ele, isso é devastador.

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Chico Araujo publica toda quarta-feira aqui no Evoé! O título "A interrogação para mais adiante..." foi escrito entre 14 e 26 de dezembro de 2017.

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