quarta-feira, 8 de novembro de 2017

Crônica do despautério de um colegiado corporativo - CHICO ARAUJO*

Naquela Assembleia Extraordinária, reuniram-se os membros daquele colegiado. Um colegiado especial, não qualquer colegiado. Não um colegiado comum. Não, isso nunca.

E apesar de em um colegiado formado ser corriqueiro todos terem direito a voz para contribuírem em uma decisão, naquele ali, especificamente, cuja convocação formal fora praticamente secreta, via envio unidirecional de e-mail não corporativo, porém particular, nem todos quiseram fazer uso desse direito de fala, não dando para confirmar se o medo – de que mesmo? – estaria condenando cada um dos presentes – e estavam todos – ao silêncio comprometedoramente cúmplice.

Eis que, todos chegados e acomodados, deu-se o seguinte colóquio – e afirma-se que ele foi o que se pode ouvir:

- Estamos todos aqui. Prestem atenção, pois vou falar somente uma vez.

- É mais alguma armação sua?

- Armação? Respeite-me, sujeito. Não se esqueça de que é o mais novo aqui. E mesmo assim veio para cá para fazer o que deve ser feito. Não se arvore em nada, até porque nem tem lastro para isso, antes de ouvir o que precisa ouvir do que pretendo dizer.

- E o que deve ser ouvido é o que vossa excelência quer dizer? O que deve ser feito é o que vossa excelência mandar?

- Você é muito arrogante, não há dúvida quanto a isso. Mas tem sentido. Não foi por minha mão que veio para cá. Dependesse de mim, teria ficado onde estava.

- Vossa excelência está em incômodo por minha presença aqui? Fico tranquilo. Não nos parecemos. Não sou espalhafatoso. Além do mais, vim para cumprir e cumpro e cumprirei.

Naquele embate pontuador de certa disputa de poder, ou, mais apropriadamente, de demarcação de poder da parte de um, já de muito ali, uma terceira voz se ouviu:

- Bem que poderiam deixar suas intrigas e diferenças para outra hora, não? Tenho mais o que fazer. Todos nós temos muito mais o que fazer. Vamos logo ao que interessa? Diga aí, “o que quer que ouçamos”?

- Bem, dizendo somente uma vez: tudo o que fizermos na reunião de amanhã tem que ser em nosso favor. Ninguém se esqueça disso. A reunião de amanhã é pública. Pública! Não podemos permitir qualquer decisão que nos arremesse desse comando que hoje temos. Vou deixar bem claro: até aquele que porventura pense de modo diferente, deve se posicionar a favor de nós todos.

Disse a última frase olhando desavergonhadamente para seu indubitável desafeto que, por sua vez, lhe assaltou o turno de fala enfatizando o enfrentamento:

- Não se iluda. Não há consenso; não haverá unanimidade.

No rebote:

- Que seja, seu insolente. Que não haja unanimidade. Talvez seja até melhor que se declare discordância. Em nome de sua arrogância e em favor do próprio processo. O importante mesmo é que a decisão nos seja favorável. E é, de fato, tudo muito simples: somos constituídos em número ímpar; a maioria nos dará a condição de continuidade, mesmo não sendo esse prosseguimento exatamente da maneira como está tudo hoje; creio, até, sinceramente, por reflexão frugal, depois de amanhã estaremos mesmo é mais fortalecidos. Isso será bom para nós em todos os sentidos, ninguém aqui duvide.

- E aqueles todos que não estão aqui, que não fazem parte dessa casta que representamos?

- Quem não está aqui entre nós, senhor palmatória do mundo, não deve nos interessar diretamente. Indiretamente, ficando bem, estenderemos esse benefício nosso a todos os que estão próximos a nós, de alguma maneira, ligados a nós. Os outros serão sempre os outros.

- Essa proposta é muito tacanha.

- Vossa "insolência" vai se opor? Se oponha! Fique no grupo dissidente. Não me interessa seu posicionamento. Aliás, não vejo problema aí. Se oponha, se é o seu desejo. Não é o senhor que importa, entende? Importa a decisão, aquela a que chamarmos de decisão final. Tenho certeza de que ninguém aqui, mesmo se opondo, abrirá mão dos lucros que nos virão a partir da decisão final. Ninguém. Muito menos o senhor.

O silêncio imperou.

Houve, não se omita, alguns olhares parecendo aflitos, algumas mãos se apertando, dedos entrecruzados, insinuando ansiedade, mas no final mesmo dois estavam com suas cabeças levantadas, se medindo, enquanto o restante já fitava o tampo escuro da mesa.

Sem qualquer dúvida naquela reunião houve uma ligeira discussão, que findou com um silêncio tão profundo que prenunciava a decisão a se confirmar no dia seguinte.

Os dois desafetos ficaram ainda algum tempo se olhando, se aferindo, se estudando; o silêncio agudo, porém, deixou claro em qual dos dois se poderia identificar a concentração do Poder.

No fim do encontro, todo o colegiado já sabia do resultado da decisão que teatralmente seria declarada na tarde do dia seguinte via canais de televisão, em tempo real, para quem quisesse ver, estivesse onde estivesse.

Todos sabiam da decisão e todos sabiam quem estaria a favor e quem estaria contra ela. Todos sabiam: a vida precisaria continuar.

Nada mais a dizer ou a fazer.

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*Chico Araujo (Sérgio Araujo) - publica toda quarta-feira no Evoé! O título "Quaundo alguém parte..." foi escrito entre os dias 12 e 13 de outubro de 2017.  Leia mais Chico Araujo no blog Vida, minha vida...

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