quarta-feira, 13 de setembro de 2017

Além do meio... CHICO ARAUJO

O silêncio que os acompanhava semelhava um profundo abismo, daqueles que quanto mais se olha menos se sabe o fundo – mesmo que um ou outro falasse, esporadicamente. Pontualmente. Especificamente temática corporativa. Em verdade, verdadeira, uma falava. Arguto ouvia atento e questionava-se sobre o dito e quanto aos acontecidos. E então, o refeitório! Não, não... um refeitório... esquisito... para ele.

Espaço de alimentação diferente, mais espaçoso, de um branco que doía nos olhos, mesas espaçadas diametralmente, absolutamente no limite de 6 lugares para cadeiras em cada uma. Nada mais, nada menos. 6 específicos lugares, sem a possibilidade da improvisação de mais um que quisesse se achegar, se aconchegar.

Nenhum rosto conhecido. Nenhuma voz familiar. Ali, naquele lugar surpreendente, ele ainda em fase inicial de habituar-se, somente reconhecia a voz intervalada de D. Felícia.

Visivelmente ainda sob o forte impacto de não ter encontrado na empresa os antigos companheiros, sem proferir palavra, sentou-se à mesa indicada por D. Felícia – curiosamente a única mesa com dois lugares. Estava consternado. Profundamente. Seu silêncio ajudava a revelar o estado de espírito entre a perplexidade e a ebulição. Era, inequivocamente, observado pela mulher já sentada a sua frente.

Da cadeira na qual se pôs, observou o gesticular de sua companhia em direção a um garçom, cuja resposta ao gesto deu-se de maneira quase que antecipada.

- Traga-nos cardápio.

- Pois não, D. Felícia.

- Cardápio? Aqui não é refeitório, é restaurante. Não vou poder pagar essa comida, esse almoço.

- Senhor Arguto, não se preocupe. A comida daqui é bancada pela empresa. Nenhum de nós pagará o que se consumir aqui. Não posso dizer até quando, mas por enquanto podemos dizer que essa refeição é “gratuita”. 0800.

Foi um quase sorriso visto na expressão facial dela? Não houve como precisar. De qualquer maneira, parecia haver, entre os dois, naquele ambiente, um momento de menor tensão. E foi exatamente naquele instante de um quase sorriso o reconhecimento da pessoa conhecida tempos antes.

- Mas, D. Felícia... a senhora... a senhora é... Ester! Ester! Aquela moça que me recepcionou no dia em que eu cheguei para trabalhar na oficina...

Um sorriso não mais quase se abriu verdadeiro e farto nos lábios, olhos, rosto de Ester Felícia.

- Enfim, o senhor me reconheceu! Como vai, seu Arguto?

- Como certamente sabe, Ester, não muito bem.

- É, eu sei. E não discuto seus motivos.

- Você está muito diferente. Esse cabelo preso no alto, feito cocó, e esses óculos grandes para o formato do seu rosto... Você está muito diferente! E nunca sorri mais? Desde hoje cedo, quando nos falamos, até agora, só vi você rindo agora... Essa sua seriedade, esse seu jeito de falar, tão firme, quase agressivo... menina, quanta mudança... Você até usava cabelos soltos! Era amiga de todos, brincava bastante, tinha sempre um sorriso pronto pra todo mundo, uma palavra amiga...

- O senhor está certo. Eu era mesmo assim. E ainda sou. Mas não aqui. Aqui na empresa não sou mais a Ester; agora sou a D. Felícia. Desde que eu assumi a diretoria dos Recursos Humanos, fui instruída, pelo diretor geral, a mudar o comportamento, a maneira de vestir, o jeito de falar, o costume de tratar as pessoas, o modo de usar os cabelos. Foi uma agressão profunda que sofri da empresa e que aceitei infligir a mim mesma. Sofri muito, calada, naquele instante, mas me submeti, é essa a palavra, me submeti, para não prejudicar a minha família, necessitada do meu trabalho e do meu salário. Quiseram me dar só o “falso status” do título de diretora e eu não aceitei; finquei pé, dizendo querer melhoria de salário para assumir a função. Ganhei naquela negociação, meu salário melhorou bem, as condições de minha família – meus pais e dois irmãos – também, e isso me trouxe muita felicidade.

Em silêncio respeitoso e compenetrado, Sr. Arguto ouvia o surpreendente relato, e percebeu a mudança na fisionomia da novamente jovem Ester, quando ela dizia a última frase.

- O que foi, Ester? Alguma lembrança a entristeceu... Sua família está bem?

- Sim, sim. Minha família está bem. Foi somente uma lembrança ruim... Já passou... Nem tudo na vida acontece como desejamos, não é mesmo?

- Isso é verdade. E você voltou a ser a D. felícia.

- Que tal escolher seu almoço? Veja o que mais lhe agrada nesse cardápio.

O comentário dele estava plenamente certo: a moça Ester voltara a “ser” a D. Felícia. O semblante dela estava fechado, bastante sério, o tom de voz incisivo, sem qualquer lastro de carinho, afetividade. Ele percebeu a mudança, só não se deu conta de que no refeitório-restaurante entrara o diretor geral.

Comeram em silêncio, cada um ruminando seus pensamentos, cada qual incomodado com o olhar insistentemente contínuo do diretor geral. Arguto chegou a se perguntar se aquele olhar sofrido ali aconteceria também na sala onde começara a trabalhar desde aquela manhã. Ester Felícia constatou continuar sob a vista daquele homem.

Quando voltavam para as salas contíguas, arriscou a pergunta:

- Devo mesmo chamá-la de D. Felícia, ou posso tratá-la por Ester, já que a reconheci?

- Aqui dentro, para qualquer assunto, me chame de D. Felícia.

- Precisa mesmo tanto rigor assim?

- Em pouquíssimo tempo, muita coisa mudou, e eu sei que o senhor sabe disso. Não somente nessa empresa, mas em todo canto. Tem muita gente desempregada: muita gente sem o seu trabalho ou o meu, muita gente sem o seu salário ou o meu. Muita gente... Incluindo todo o pessoal dispensado da oficina, fechada integralmente em favor da terceirização... Todo o trabalho realizado nela, a partir de agora será feito em outro lugar, em outra oficina. Pelo que entendi, oficina de um amigo do dono dessa empresa aqui. Todas as máquinas daqui foram levadas para lá, não posso dizer a que preço, quais os valores acertados. Sei também que alguns funcionários que trabalhavam com você fizeram seleção para lá. Minoria. A maioria está no desemprego mesmo. Eu sinto muito, muito mesmo. Como já lhe disse pela manhã, conheço todos. E mesmo sei das necessidades de todos. Sinto muito mesmo, por eles, por você, pelas famílias.

Antes de cada um entrar novamente em suas salas, depois de pesado silêncio, Arguto perguntou:

- Por que eu fiquei, D. Felícia?

Olhando no olho daquele trabalhador a quem sabia ter ajudado, segura e feliz, Ester respondeu:

- Duas coisas, senhor Arguto, duas coisas: suas competências e sua idade. De todos os trabalhadores alocados na oficina, o único seguramente com competências outras a serem exploradas em outro setor era você. Também a sua idade. Confesso, eu mesma insisti para que não se desse sua dispensa, pois teria dificuldades em se recolocar noutra empresa, devido ao cenário existente hoje no país. As mudanças são profundas e vão além da política e da economia, indo mesmo pelo social e por muitas outras áreas. Na função que tenho hoje na empresa, tenho acesso às fichas de todo e qualquer trabalhador. Se os outros não deveriam ter sido dispensados, o senhor não poderia ser. E ainda bem que não foi.

- Então foram três coisas.

- Três coisas?

- Competências, idade e... Ester Felícia. Eu agradeço.

Algo maior envolveu os dois naquele instante, contudo, embora sentido, nenhum deles poderia explicar o que era, o que fosse, o que seria. Os olhos de ambos seguraram um profundo olhar em segundos intensos. Nenhuma palavra emergiu. Depois, os passos dela entrando na sala; os passos dele em caminho da sala na qual trabalharia – trabalharia? – por tempo que não sabia quanto.

Nela, já sentado na cadeira sem o abraço sentido pela manhã, fitou a tela diante de si, espreitou, pelos cantos dos olhos, as câmeras instaladas no recinto, intuiu olhar vigilante às suas costas.

A tarde se alargava sem nenhum trabalho efetivo para fazer – estranho isso. Numa empresa privada? – e a ociosidade lhe informava a necessidade de inevitável conversa a ter com sua família. Seria esse o prato a se consumir na hora do jantar? Sua família, seu ponto de equilíbrio. Seu porto seguro. A sua maior questão. O seu máximo lema. Aquele momento, dúvida e esperança.

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Chico Araujo publica toda quarta-feira no Evoé! A crônica "Além do meio..." foi escrita a 10 de setembro de 2017. Leia mais Chico Araujo no blog Vida, minha vida...

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