quarta-feira, 30 de agosto de 2017

Um dia que transcorre... - Chico Araujo


Aquele dia começara, sim, de maneira inesperada, mas poderia mudar, no sentido de ficar bom? Ergueu sua coragem aparentemente adormecida e seguiu a funcionária incumbida de lhe abrir as portas para o novo caminho. No percurso de ambos, apenas toc toc toc toc dos saltos dos sapatos dela. Nenhuma palavra de nenhum dos dois.

Tamanho o silêncio dos dois que ele considerou ser possível aos outros sentados em seus cubículos de divisórias ouvirem seus pensamentos. Era uma ruminação intensa, descontrolada, jorrando pensamentos e dúvidas sem limite nem linearidade.

- O que será que vai acontecer depois dessa? Onde vou me encaixar nesse novo desafio? O que será mesmo que vou fazer? Quem me comandará, eu mesmo ou essa que me leva aonde eu nem bem sei? Minha família, como fica nisso tudo? Vai ser bom pra mim; vai ser bom pra ela? Meus colegas, pra onde irão? Vão pra outro setor também, ou vão pra rua? Sou só eu que fico desse grupo que liderei e que agora nem dele me despeço? Por que não posso falar com os amigos feitos em tantos anos de convivência? Será que a empresa tá quebrando? É só um ajuste organizacional para melhorar o desempenho? Se assim for, ninguém precisará sair, só se ajustar noutro ritmo e propósito de trabalho. Como ficam todos? Como fica a família de todos? É mesmo um momento muito ruim pro País e todo mundo tá nesse barco em processo de afundamento. Quer dizer, alguns, a maioria, porque tem uns aí que estão só lucrando com essa desgraceira toda. A gente percebe tanta mentira deslavada contada de maneira tão sem vergonha que dá nojo. E eles não se quebram, se arranjam sempre, dão sempre um jeitinho de tudo ficar melhor ainda pra eles. E nós, como ficamos? E os filhos? E os netos? As futuras gerações terão garantia de um bom futuro?

- Chegamos. Aqui será sua sala. Veja se está a seu gosto e me comunique se precisar de algo. Estarei na sala ao lado. Somos vizinhos.

- Mas eu não preciso de uma sala assim...

- Precisará, pode ter certeza. O senhor agora vai fazer um trabalho diferente.   Teste logo seu telefone para ver se tem linha. O ramal do senhor é 13, o meu é 14. O senhor não precisa ir até minha sala pra falar comigo, pode me ligar pelo ramal.

Sem dúvida, ainda estava atônito.

- O que seria seu trabalho dali por diante, o que era mesmo que ele iria fazer? O que ele iria comprar nesse Setor de Compras? A quem iria se reportar em alguma necessidade? Com quem iria tratar na hora de fazer alguma compra? Quem seriam os fornecedores dos produtos de tais compras? Quem seriam os representantes desses fornecedores? Como ficariam seus colegas de trabalho na oficina? Quem os comandaria a partir de agora? A oficina ainda vai existir? Quem era exatamente essa mulher que estava ali praticamente lhe dando ordens? Por que ele estava sendo levado para um setor que não conhecia, não sabia como o trabalho lá se realizava, que na verdade nunca nem soube que existia?

Andou de um lado para outro da sala, tentando ver o que ela tinha, o que ela era, o que ela seria. Achou-a grande para o seu tamanho. Não precisava de sala tão grande para fazer compras. E para fazer compras não precisaria mesmo era sair para ver os produtos, examiná-los, verificar neles a qualidade, decidir se seriam bons ou não para a empresa? Enquanto investigava a sala, cada vez mais ia sentindo crescer a sensação já nascida de que seria pequeno ali, porque creu ser aquele espaço e aquela função muito maior do que poderia abraçar. Sim, ele sempre abraçava aquilo que era de sua responsabilidade; mas "aquilo" precisava caber no seu abraço.

Mesmo estando lento nos passos, ainda andava pelos cantos da sala, certamente já organizada para aquela função que lhe fora imposta no começo do seu expediente. Mesa longa de vidro com porta-fichários, porta-canetas e lápis, porta-papeis – sentiu falta de um grampeador –; cadeira perfeita em largura, altura e braços para lhe caber dentro; o telefone preto de teclas luminosas; o aparelho de ar refrigerado; estantes do lado direito de quem se punha sentado naquela mesa impessoal; quadros elegantes nas outras paredes; um enorme televisor fininho bem de frente à mesa onde agora faria (faria?) seu trabalho – ou parte dele.

- Mas pra que essas seis câmeras nessa sala? É uma de frente pra mesa, outra bem atrás dela, mais duas – nos cantos esquerdo e direito – do lado de quem senta à mesa, mais outras duas bem ali na frente, nos cantos esquerdo e direito da sala. Vou trabalhar ou ser vigiado? Alguém trabalhava aqui antes? O que fazia pra tanta câmera estar olhando pra ele? Mas essa sala tá com um cheirinho de ser tão nova...

- Licença.

- Claro. Pode entrar.

Já estava dentro e pondo sobre a mesa uma caixa, que foi aberta rápida e mecanicamente.

- Me mandaram trazer seu novo computador. Tudo o que o senhor precisará fazer nele já está com os programas instalados, então não precisa se preocupar em instalar mais programa nenhum.

- E o que vou precisar fazer nele?

- Aí o senhor me desculpe, mas não sei não. Sou apenas o entregador desses notebooks. Também já tem acesso à Internet, viu?

- E pra que vou querer Internet aqui?

- Isso, também não sei, mas certamente tem a ver com o trabalho do senhor. Vem alguém aqui dizer pro senhor como deve usar os programas instalados.

- Quem? Quando?

- Isso... também não sei. E já aprendi que quanto menos eu souber aqui nessa empresa, melhor pra mim. Só preciso instalar programas e entregar computadores como fiz agora com o senhor. Tá bom demais. Até qualquer hora.

- Até. Mas, você é o...

Não deu tempo de terminar a pergunta, pois o rapaz sumira pela porta por onde entrara.

- Pooommm... Pooommm... Pooommm...

- Percebeu que era da mesa que vinha aquele som que quase não escutara – o telefone preto de teclas luminosas.

- Alô?

- Espero que esteja bem instalado na sua sala.

- Bem, eu...

Ia falar que talvez tivesse dificuldade em se habituar naquele ambiente, pois era homem lá da oficina, lugar onde acreditava se encaixar bem. Não houve tempo para essa revelação espontânea e sincera.

- O senhor, certamente, precisará aprender um pouco desse novo ofício. Aguarde um pouco que já estou mandando uma pessoa ir aí a sua sala para explicar algumas ações a que deverá se habituar e pôr em prática.

- Aguardo. Mas antes que desligue, preciso fazer uma pergunta.

- Faça.

- O que vai acontecer com a oficina e o pessoal todo que trabalha lá, uma boa parte recrutada por mim?

- Como lhe disse antes, o senhor agora precisa se concentrar no seu novo trabalho. O até ontem entenda como passado e... o passado deve ficar nele.

Não pôde ampliar a conversa; a ligação foi interrompida bruscamente. Esse corte brusco no diálogo apenas serviu para lhe aumentar aquela sensação de angústia em crescimento. Não poderia fechar os olhos ao que imaginava aconteceria; não seria digno, se abandonasse seus colegas simples e tranquilamente como objetos descartáveis e seguisse em frente – enfim, estaria empregado. Precisava de respostas e iria buscá-las.

Concluiu esse pensamento vendo entrar naquela sala espaçosa e confortável um rapaz muito jovem que lhe informou ser a pessoa a instruí-lo na nova função. Lembrou-se de ter lido – em revista ou em jornal? – que talvez o mundo não fosse mais somente dos espertos, mas também dos que tinham novas ideias. E antes de lhe dar maior atenção, ainda pensou: Somente os mais jovens podem ter novas ideias?

Passou a ouvir o jovem, alguém bem objetivo, de palavras precisas. Mas se distraiu um pouco, lembrando-se mais uma vez de seus liderados até o dia anterior e da família, sem ter nenhuma certeza do que aconteceria nesse futuro que já lhe chegava. 

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Chico Araujo publica toda quarta-feira no Evoé! A crônica "Um dia que transcorre..." foi escrita no dia 28 de agosto de 2017. Leia mais Chico Araujo no blog Vida, minha vida...

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