segunda-feira, 31 de julho de 2017

O MESSIANISMO NO BRASIL DOS SÉCULOS 19 E 20 E A ELOQUÊNCIA A SERVIÇO DESSES NOVOS MESSIAS - Túlio Monteiro

No capítulo “O Homem”, Euclydes da Cunha busca abordar cientificamente os fatores diferenciadores das regiões Norte e Sul de nosso País. Ao tratar dos aspectos climáticos e geográficos, o escritor consegue atingir seus objetivos de forma amplamente didática, sendo a sua escrita dotada de extremada neutralidade, o que impõe à sua narrativa – neste ponto – um caráter dimensional profundamente utilitário. Porém, influenciado pelo absolutismo das fundamentações positivistas de Auguste Comte e Émile Littré, pelas teorias evolucionistas de Charles Darwin e por uma ciência sócio-antopológica que ainda caminhava à sombra do colonialismo europeu do século XVI, Euclydes, quando da abordagem destes tópicos, perpetra agressões à miscigenação racial brasileira dignas dos mais radicais senhores feudais do Brasil colonial.

Sobre as tendências científicas daquela época, os historiadores Flora Sussekind e Roberto Ventura comentam:

“Em Grande medida, esta ciência social que valorizava o europeu do Norte e desprezava os povos morenos, os africanos e os asiáticos – particularmente o darwinismo social de Spencer e o racismo científico de Gobineau e Lapouge – mal escondia sua natureza de apologia do domínio de classe da burguesia e da legitimação da expansão imperialista sobre o planeta. Caráter que, já em 1905, era denunciado com argúcia pelo médico e historiador sergipano Manoel Bonfim, para quem seus praticantes eram filósofos do massacre, cuja teoria não passa de um sofisma abjeto do egoísmo humano, hipocritamente mascarado de ciência barata, e covardemente aplicado à exploração dos fracos pelos fortes. ” 

Sem nenhuma intenção iconoclasta, nos propomos a comprovar de forma límpida as afirmações que acabaram de ser feitas. Com excertos transcritos de forma literal d’Os Sertões, seguidos de apreciações fundamentadas, comprovaremos, neste ponto, o caráter racista que parecia estar contido na personalidade de Euclydes da Cunha, ele mesmo um mestiço de origem luso-baiana. 

(...)

Por todos os cantos da Terra, desde os mais remotos tempos, vez por outra surgem homens com o magnífico dom da eloquência. Uns, como os sábios Platão, Aristóteles e Marco Túlio Cícero, usaram a arte de bem falar em favor de causas que pudessem engrandecer a natureza coletiva da humanidade. Outros, utilizaram-se da dificílima capacidade da expressão fluente em benefício de interesses próprios. Interesses estes quase sempre mesquinhos, porém, magnificamente camuflados por discursos ilusórios, bem ao estilo sagaz da maioria dos políticos atuais: homens eloquentes e, acima de tudo, extremamente bem sintonizados com as carências e desesperos das comunidades humildes que costumam representar. – Nada mais atual.

No Brasil, país de maioria católica desde sua descoberta, o bem-falar sempre esteve associada ao fenômeno do messianismo. Por todos os cantos deste nosso país-continente, sempre surgiram e continuam a surgir movimentos carregados de misticismo, onde homens dotados de profunda capacidade de expressar com palavras todas as revoltas, angústias e necessidades de pessoas totalmente despidas de qualquer esperança, conseguem arrebanhar centenas, às vezes milhares de fanáticos seguidores, prometendo-lhes, em geral, o impossível.

Dentre os inúmeros acontecimentos deste tipo ocorridos em terras brasileiras, alguns merecem destaque, ora por conta das graves consequências advindas da aparente loucura de seus mentores, ora pelas curiosidades quase hilárias que produziram. O mais famoso de todos esses episódios foi o de Canudos, que em 1997 completou cem anos, inspirou romances do porte de Os Sertões (1902), de Euclydes da Cunha; A Guerra do Fim do Mundo (1981), de Mário Vargas Lhosa e o filme Canudos (1997), de Roberto Resende.

Antônio Vicente Mendes Maciel, o Conselheiro, se autoproclamando um novo Messias, perambulou durante alguns anos pelos sertões do Nordeste, arregimentando, por cada vilarejo que passava, inúmeros seguidores. Dentre as incontáveis promessas que o novo “Filho de Deus” fez aos seus discípulos, a maior delas foi a de que em breve chegariam a uma nova Terra Prometida, repleta de tudo o que aquele povo tanto ansiava por conseguir: comida e água fartas, moradias decentes, igualdade social e partilha justa dos bens de cada um em benefício do coletivo.

O que os seguidores de Antônio Conselheiro não sabiam é que seu redentor era um homem fracassado, traído e abandonado pela mulher, além de ferrenho defensor do sistema monarquista de Dom Pedro II, que acabara de ser deposto em favor da recém-proclamada República de Deodoro da Fonseca.

Seu primeiro combate ao novo regime de governo brasileiro data de 1893. A cobrança obrigatória de impostos decretada pelos republicanos, foi o marco inicial da luta que culminaria com os acontecimentos ocorridos no arraial de Canudos cerca de quatro anos depois. N’Os Sertões, Euclydes da Cunha assim descreve este ocorrido:

“Viu a República com maus olhos e pregou, coerente, a rebeldia contra as novas leis. Assumiu desde 1893 uma feição combatente inteiramente nova.

Originou-a fato de pouca monta.

Decretada a autonomia dos municípios, as Câmaras das localidades do interior da Bahia tinham afixado nas tábuas tradicionais, que substituem a imprensa, editais para a cobrança de impostos etc.

Ao surgir esta novidade Antônio Conselheiro estava em Bom Conselho. Irritou-o a imposição; e planejou revide imediato. Reuniu o povo num dia de feira e, entre gritos sediciosos e estrepitar de foguetes, mandou queimar as tábuas numa fogueira, no largo. Levantou a voz sobre o ‘auto de fé’, que a fraqueza das autoridades não impedira, e pregou abertamente a insurreição contra as leis. ” 

Neste mesmo ano Conselheiro e seus prosélitos chegaram às margens do rio Vaza-Barris. Lá ficava Canudos, uma velha fazenda de gado abandonada que Antônio Conselheiro definiria como Nova Terra Prometida e Euclydes da Cunha como Tróia de taipa dos jagunços. 

N’Os Sertões, numa excelente descrição histórico-geográfica, Euclydes mapeia de forma pormenorizada, tanto os espaços físicos do local quanto os vários motivos e crendices que levaram incontáveis sertanejos àquelas paragens áridas:

“Canudos, velha fazenda de gado à beira do Vaza-Barris, era, em 1890, uma tapera de cerca de cinquenta capuabas de pau-a-pique.

Já em 1876, segundo o testemunho de um sacerdote, que ali fora, como tantos outros, e nomeadamente o vigário de Cumbe, em visita espiritual às gentes de todo despeadas da terra, lá se aglomerava, agregada à fazenda então ainda florescente, população suspeita e ociosa, armada até os dentes, e cuja ocupação, quase exclusiva, consistia em beber aguardente e pitar uns esquisitos cachimbos de barro em canudos de metro de extensão (Padre V.F.P., vigário de Itu, 1898), de tubos naturalmente fornecidos pelas solanáceas (canudos-de-pito), vicejantes em grande cópia à beira do rio.

Assim, antes da vinda de Conselheiro, já o lugarejo obscuro – e o seu nome claramente se explica – tinha, como a maioria dos que jazem desconhecidos pelos nossos sertões, muitos germens da desordem e do crime. Estava, porém, em plena decadência quando lá chegou aquele em 1893: tejupares em abandono; vazios os pousos; e, no alto de um esporão da Favela, detalhada, reduzida às paredes exteriores, a antiga vivenda senhoril, em ruínas...

Data daquele ano a sua revivescência e crescimento rápido. O aldeamento efêmero dos matutos vadios, centralizado pela igreja velha, que já existia, ia transmudar-se, ampliando-se em pouco tempo, na Tróia de taipa dos jagunços.

Era o lugar sagrado, cingido de montanhas, onde não penetraria a ação do governo maldito.

A sua topografia interessante modelava-o ante a imaginação daquela gente simples como o primeiro degrau, amplíssimo e alto, para os céus...

Não surpreende que para lá convergissem, partindo de todos os pontos, turmas sucessivas de povoadores convergentes das vilas e povoados mais remotos.

Diz uma testemunha (Barão de Jeremoabo): Alguns lugares dessa comarca e de outras circunvizinhanças, e até do Estado de Sergipe, ficaram desabitados, tal o aluvião de famílias que subiam para os Canudos, lugar escolhido por Antônio Conselheiro para o centro de suas operações. Causava dó verem-se expostos à venda nas feiras, extraordinária quantidade de gado cavalar, vacum, caprino, etc., além de outros objetos, por preços de nonada, como terrenos, casa, etc. O anelo extremo era vender, apurar algum dinheiro e ir reparti-lo com o Santo Conselheiro.

Assim mudavam os lares. ” 

A tranquilidade reinava no arraial de Canudos e cada dia mais fiéis a ele chegavam para fixar moradia, até que 1897 chegou e com ele os ataques de tropas militares enviadas pelo governo brasileiro ao lugar. Canudos não resistiu, o povo de Conselheiro não resistiu, o novo Messias não resistiu. Em ruínas, depois dos bombardeios de pesados canhões, a Nova Terra Prometida foi riscada do mapa para entrar na História do Brasil.

O tempo passou lento e o século 19 findou-se. Na primeira década deste século que também já assistia ao seu apagar de luzes, surgiu no interior de Alagoas o “monge” João Maria, que bem ao estilo de Conselheiro, arrebanhou centenas de fiéis seguidores. “Fazei penitência”, conclamava o novo redentor, enquanto descrevia, em seus magníficos sermões, como seria o fim do Mundo. Nele o Sol escureceria por três dias, incontáveis nuvens de gafanhotos arrasariam com todas as colheitas e a fome se instalaria em todos os lugares. Algo precisava ser feito para livrar o Mundo de todo aquele pecado e rezar era a solução. O caos estava por toda parte, dizia João Maria. O Mundo estava coberto de pecados, ainda mais nos lugares onde a República, segundo ele um regime pervertido, era o poder dominante.

João Maria não viveu tempo suficiente para levar a cabo um de seus projetos mais ambiciosos: o de fundar uma vila santa. Morreu de causas naturais em 1910, mais uma vez deixando os sertanejos órfãos de esperanças.

Em 1911, porém, surgia um novo “monge”. Desta vez o fenômeno ocorreria no Sul do País, mais precisamente na cidade de Palmas, interior do Paraná. Miguel Lucena de Boaventura era um desertor do 14º Regimento de Cavalaria de Curitiba que carregava sobre os ombros um processo por sedução de uma menina de doze anos. Miguel Lucena, que dizia ser o “monge” José Maria, irmão do “monge” João Maria das Alagoas, encontrou no interior do Paraná um campo extremamente fértil para sua pregação “mística". Como Antônio Conselheiro, o “monge” soube muito bem utilizar-se do desespero e das necessidades que imperavam na região àquela época. Um restritíssimo grupo de latifundiários detinha direitos sobre as terras produtivas, enquanto o Governo Federal desalojava os pequenos agricultores de suas propriedades para concedê-las a grupos de colonizadores estrangeiros, na maioria europeus, que diariamente chegavam ao País.

Miguel Lucena, diga-se “monge” José Maria, um mestiço de índio com branco, quase sem dentes, manco de uma perna, cabelos e barba compridos, e excelente desenvoltura no falar, virou santo para aquela gente. Seus seguidores juravam que ele podia andar sobre as águas; que fontes brotavam nos lugares por onde passava; que ele seria capaz de curar as mais variadas doenças, tendo inclusive o poder de conversar com Deus. As árvores sob cujas copas ele costumava pernoitar, imediatamente transformavam-se em pontos de inumeráveis romarias.

Em Taquarassu, município de Curitibanos, estado de Santa Catarina, José Maria ergueu uma igreja e no local estabeleceu uma monarquia, regime santificado por ser, segundo ele, o regime de Deus, o Rei de todos os reis. Declarou como monarca do lugar um velho fazendeiro analfabeto, com o intuito maior de cada vez facilitar mais seu poder de manipulação sobre o “rebanho” que aumentava a cada dia. Em 1912, já eram cerca de setecentos os seguidores do “monge”, número bastante significante para os padrões da época.

A vida monárquica do lugar cultivava o misticismo e a alegria, sendo a coletividade seu objetivo maior. O comércio era proibido, tendo todos que repartir igualmente o que possuíam. José Maria reinava unânime. Celebrava casamentos, dava bênçãos e profetizava coisas absurdas sem nunca ser questionado, nem mesmo quando passou a dormir com três virgens que o assessoravam permanentemente.

Um dos episódios mais hilariantes ocorridos no seu “reinado”, foi o de um jovem que queria fazer parte da sua guarda de honra. Como prova da valentia do rapaz, José Maria pediu-lhe que matasse o dragão que aterrorizava o sertão. Disposto a cumprir sua missão, durante meses o moço percorreu a caatinga à procura da tal fera. Um dia, ao encontrar o que julgou ser o rastro do dragão, partiu eufórico ao seu encontro. Já era noite quando encontrou o animal. Sem medo do barulho apavorante que o monstro fazia, sacou a espada, firmou-se na sela de sua montaria e postou-se diante da fera que vinha veloz em sua direção. Indiferente, o trem passou por cima do bravo cavaleiro e de seu cavalo. Desculpem os risos desse que vos escreve.

Preocupadas com o fanatismo que se alastrava em seu estado, as autoridades de Santa Catarina expulsaram o “monge” e seus seguidores de Taquarassu. Decididos a não se renderem, após longo tempo de caminhadas fundaram uma nova monarquia, desta vez em Irani, uma pequena cidade que ficava ao sul de Palmas, Paraná. Dispostas a não aceitarem a volta do renegado José Maria ao seu estado, autoridades militares nomearam o capitão João Gualberto para, junto com quatrocentos homens, destruírem a tal “monarquia”. Ao final do sangrento combate, ocorrido em 1912, havia centenas de mortos de cada lado, dentre eles o capitão João Gualberto e José Maria.

Se por um lado a vila santa de Irani fora dizimada, por outro a de Taquarassu renascia através das visões de uma das três “virgens” de José Maria. Teodora, que disse ter recebido em sonho um aviso do “monge”, nomeou Manuel, um jovem de dezoito anos para sucedê-lo. Pouco durou o reinado do rapaz. Joaquim, um menino de apenas onze anos o substituiu após terem descoberto que ele seduzira as três virgens com as quais, a exemplo de José Maria, costumava dormir. 

Em 1914, o governo de Santa Catarina tomando medidas drásticas, exterminou Taquarassu. Os que sobraram partiram para vários lugares, fundando em cada um deles novas vilas santas. A de Caraguatá tinha como líder espiritual a virgem Maria Rosa que, dentro de um imenso vestido branco, flores nos cabelos, espada na cinta e espingarda na sela de seu cavalo branco, liderou ágeis tropas de jagunços contra os soldados daquele estado. Outra, a vila de Santa Maria, tinha a sua frente um certo Deodato, conhecido como São Joaquim das Palmas, que além de ter por hábito matar soldados e civis, saqueava as cidades vizinhas em busca de alimentos cada vez mais escassos. 

Decidido a dar um ponto final àqueles redutos “monárquicos”, entrou em cena o Governo Federal. Comandados pelo general Setembrino de Carvalho, sete mil homens, que à época correspondiam a 80% do exército brasileiro, eliminaram, uma a uma, as vilas que existiam. Nessa espécie de “guerra santa”, pela primeira vez foram utilizados aviões da Força Aérea Brasileira para bombardear civis em nosso próprio território.

No entanto, o movimento messiânico mais bárbaro de que se tem notícia em terras brasileiras foi o da Pedra do Reino, ocorrido entre os anos de 1837 e 1838, em Monte Santo, uma formação rochosa próxima a Vila Bela, hoje São José do Belmonte, município de Pernambuco localizado na Serra do Catolé, divisa com o estado da Paraíba. Lá surgiu um mameluco chamado João Antônio dos Santos, que dizia ter sonhado com o rei Dom Sebastião de Portugal. No sonho, o rei lhe afirmara que se encontrava encantado por forças de magias negras. Para libertar-se dessas magias e voltar a reinar sob sua forma humana, duas pedras muito bonitas deveriam ser lavadas com sangue de crianças inocentes, sendo ele, João Antônio, o escolhido para liderar a sua redenção. Dom Sebastião também lhe deu garantias de que, tão logo fosse feita a lavagem, as pedras se quebrariam diante de seus olhos e delas ele irromperia para castigar a humanidade ingrata e cumular riquezas e milagres aos seus seguidores. Os pobres ficariam ricos, os cegos voltariam a enxergar, os negros ficariam brancos, os aleijados voltariam a andar e tantas outras promessas que, somente um povo esquecido pelas autoridades responsáveis por sua dignidade, seria capaz de dar ouvidos. 

Bem-falante que era, em pouco tempo João Antônio conseguiu juntar inúmeros seguidores. No dia marcado por ele para o sacrifício, um sem números de doentes e miseráveis se encontrava aos pés das duas pedras. O novo “Messias” rezou aos céus e ordenou que se iniciassem as oferendas. Pais e mães traziam seus filhos pequenos para serem sacrificados. Como consolo, João Antônio dizia-lhes que seus entes queridos alcançariam a graça divina tão logo fossem mortos.

Euclydes da Cunha, a exemplo de outros três grandes escritores brasileiros, descreve este movimento nas páginas de seu mais famoso romance:


“No termo de Pajeú, em Pernambuco, os últimos rebentos das formações graníticas da costa se alteiam, em formas caprichosas, na serra Talhada, dominando, majestosos, toda a região em torno e convergindo em largo anfiteatro acessível apenas por estreita garganta, entre muralhas a pique. No âmbito daquele, como púlpito gigantesco, ergue-se um bloco solitário – a Pedra Bonita.

Este lugar foi, em 1837, teatro de cenas que recordam as sinistras solenidades religiosas dos Achantis. Um Mameluco ou cafuz, um iluminado, ali congregou toda a população dos sítios convizinhos e, engripando-se à pedra, anunciava, convicto, o próximo advento do reino encantado de Dom Sebastião. Quebrada a pedra, a que subira, não a pancadas de marreta, mas pela ação miraculosa do sangue das crianças, esparzido sobre ela em holocausto, o grande rei irromperia envolto de sua guarda fulgurante, castigando, inexorável, a humanidade ingrata, mas cumulando de riquezas os que houvessem contribuído para o desencanto.

Passou pelo sertão um frêmito de nevrose...

O transviado encontrara meio propício ao contágio de sua insânia. Em torno da ara monstruosa comprimiam-se as mães erguendo os filhos pequeninos e lutavam, procurando-lhes a primazia no sacrifício... O Sangue espadanava sobre a rocha jorrando, acumulando-se em torno; e afirmam os jornais do tempo, em cópia tal que, depois de desfeita aquela lúgubre farsa, era impossível a permanência no lugar infeccionado.” 

Cinquenta e cinco crianças já tinham sido barbaramente executadas quando tropas federais chegaram ao lugar para dar cabo ao terrível holocausto. O tumulto que se seguiu foi enorme. Enquanto muitos corriam para longe, uns poucos fanáticos enfrentaram os soldados, elevando para oitenta e três o número de mortos, dentre eles o próprio João Antônio.

A título de curiosidade, convém especificarmos os três outros escritores citados acima que produziram obras versando sobre os acontecimentos da Pedra Bonita. O primeiro foi o cearense Araripe Júnior com seu O Reino Encantado, lançado em 1878, no Rio de Janeiro. Depois de Euclydes da Cunha com Os Sertões, de 1902. Após isso, foi a vez de José Lins do Rego retratar o fenômeno em Pedra Bonita, de 1938, à época do centenário daquele famoso massacre. Por fim, em 1971, o pernambucano Ariano Suassuna escreveu Pedra do Reino, uma versão contemporânea do acontecimento, tida por muitos como a obra definitiva sobre o assunto.


POR UMA CONCLUSÃO
Ao final de nossa análise cremos ter comprovado de forma satisfatória os objetivos propostos na introdução deste estudo. Na sua primeira parte, conduzimos o leitor a uma breve explanação do que foram as manifestações messiânicas mais importantes no Brasil dos séculos 19 e 20, dando tratamento mais cuidadoso e aprofundado aos fatos ocorridos no episódio da Guerra de Canudos, em 1897. 

Na Segunda parte, corroboramos o caráter de pouca ou nenhuma utilidade social que Euclydes da Cunha inseriu no capítulo “O Homem”, d’Os Sertões, este sim, o objetivo maior desta explanação em forma de trilogia.

De maneira crítica e clara, constatamos a extrema radicalidade do autor quando de sua abordagem da temática racial brasileira. No romance em estudo pudemos observar a genialidade de um homem muito bem informado, no que diz respeito a assuntos relacionados à geografia, à geologia, à botânica e à História do Brasil. Porém, ao direcionar-se para o campo das ciências filosóficas e humanas, Euclydes perdeu-se em conclusões absurdas quando tentou diferenciar e catalogar os seres humanos em raças e sub-raças. Ao tratar da miscigenação racial ocorrida em nosso País desde a época de seu descobrimento, o autor, de maneira pouco ética e tendenciosa – Positivista e quase ariana – termina por definir os mestiços brasileiros como uma sub-raça prejudicial ao bom andamento da evolução humana, privando-se, desta forma, da oportunidade de inserir Os Sertões no seletíssimo grupo das obras-primas universais. Fica, pois, aqui, nosso protesto formal àqueles que tentam equiparar este romance à obra-mor lusitana: Os Lusíadas, de Camões. Já que um escritor, para igualar-se ao maior literato português de todos os tempos tem que, no mínimo, respeitar as condições étnicas e culturais de seu povo, comportamento ético este que Euclydes da Cunha em momento algum assumiu quando da feitura de seu livro.

Para concluir transcreveremos dois trechos extraídos d’Os Sertões, onde mais uma vez o escritor dá mostras de sua falta de profundidade científica no que diz respeito às variações raciais humanas. Nos trechos a seguir transcritos, a prova cabal da inaptidão e da falta de coerência de Euclydes da Cunha nos campos da antropologia e da sociologia:

“Não temos unidade de raça.
Não a teremos, talvez, nunca.”

“Os sertanejos invertiam toda a psicologia da guerra: Enrijavam-nos os reveses, robustecia-os a fome, empedernia-os a derrota.
Ademais entalhava-se o cerne de uma nacionalidade.
Atacava-se a fundo a rocha viva de nossa raça.” 

Não poderíamos findar esta análise com prova mais contundente do pouco apuro social-antropológico de Euclydes da Cunha. Como elevar Os Sertões à categoria de obra-prima da literatura brasileira quando nele estão contidas semelhantes discrepâncias? Como o autor pode, num determinado momento aniquilar com a dignidade dos sertanejos brasileiros e num outro alavancá-los à condição de bravos guerreiros? 

No nosso entender Os Sertões é, sem dúvidas, uma obra literária de grande porte. Seu caráter utilitário e informativo, como já dissemos, é magnífico no que se relaciona ao plano histórico. Sem ele os acontecimentos daquele final de século 19 nada mais seriam hoje que meros fragmentos repassados de geração para geração. De sua grandeza, neste aspecto, temos certeza. Porém, nosso objetivo inicial era o de mostrar as duas faces – a utilitária e não utilitária – de seu conteúdo. E nisto, temos convicção de havermos conseguido lograr êxito.

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Túlio Monteiro - escritor, revisor e crítico literário, publica todas as segundas aqui no Evoé! Leia também Literatura com Túlio Monteiro.

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