quarta-feira, 28 de junho de 2017

Por que que a gente é assim? - Chico Araujo

O fato é, aparentemente, bem simples, de tão comum: estacionar o veículo o mais próximo possível da clínica em que se fará um exame. 

Na avenida movimentada por trânsito intenso, não é fácil localizar um espaço onde se possa deixar o carro. A senhora conseguiu. Visualizou a vaga de longe e com destreza o paralisou em lugar impróprio. Desceu, logo depois, com seus dois filhos.

Na dinâmica da situação, cri não ter observado que, em parando naquele exato lugar, barrara o acesso feito na calçada para cadeirantes. Atencioso, fiz o alerta. Pra quê? 

A resposta veio rápida, entre irritada e arrogante: O senhor está vendo outro lugar pra estacionar? Surpreso pela réplica, sugeri, quase calmo: “A senhora não deve ter visto o estacionamento aqui mesmo na esquina.” Então, a tréplica veio mais abespinhada: "E eu lá vou pagar seis reais num estacionamento por causa de um exame?"

Desalentei. 

Pedi desculpas e rumei para o estacionamento onde havia deixado meu carro. Paguei sete reais e cinquenta centavos por ter excedido o tempo de 1 hora. Outra parte daquela conta foi paga pela própria clínica para onde se dirigiu a senhora e seus dois filhos – uma menina, um menino –, a mesma clínica da qual saí, após realizar um eletrocardiograma de rotina.

Aquela casa de saúde tem por método de beneficiamento a seus clientes / pacientes pagar a primeira hora do estacionamento onde podem deixar seus veículos a uma distância dela de aproximadamente trinta metros. Um amplo estacionamento.

Já no meu carro, me assaltou a pergunta (que não se associa ao cancioneiro cazuziano): Por que que a gente é assim? Foi uma questão que se insurgiu e que não sossegou. Não saí logo do estacionamento; fiquei parado ali alguns minutos, refletindo sobre aquela pergunta. Não me veio resposta, nem lá, no tempo em que fiquei estacado, nem aqui, onde me impus escrever esse texto, talvez almejando, com ele, alcançar alguma refutação satisfatória. Não veio.

Solicito sua percepção, leitor, para o fato de eu não estar me referindo a qualquer uma terceira pessoa somente. É importante a consciência de que a expressão “a gente” inclui o “nós”, portanto se refere a ela, a mim e a você também. É muito possível que não somente aquela senhora tenha realizado hoje a ação descrita; é bem provável que muitos de “nós” também a tenhamos praticado. Então, Por que que a gente é assim?

Amamos em plenitude somente a nós mesmos? Os outros que se danem? Altruísmo “às favas”? Amemos a nós mesmos como a nenhum próximo amaremos? Sendo o homem, por consenso, um ser social, como explicar tamanho paradoxo, exatamente esse expondo, em uma simples vaga para estacionar, que ego é infinitamente mais relevante que álter? Como seres sociais – ainda se afirma muito isso –, devemos ter em plano bem desenvolvido moral e ética. Temos? A partir do exemplo, não temos.

Não, prezado leitor, não estou sendo radical, estou apenas refletindo sobre uma ação simples, cotidiana, semelhante a várias outras ações, também vulgares, por habituais, por meio da qual nos revelamos ser muito menos, quando ousadamente nos declaramos ser abundantemente mais. Somos presunçosos, não?

Concretamente, a grande questão não está aqui posta tendo por base o suposto único lugar visualizado para estacionar o mais próximo possível do destino programado, tampouco se refere aos seis reais a se pagar em um estacionamento. Isso é pouco e assaz pequeno. O amplo “mote” proposto está em torno do nosso inequívoco “nos sentirmos bem” – e bem à vontade –, mesmo quando sabemos do prejuízo de outrem por ação que concretamente “a gente” realiza.


Os nossos dias, prezado leitor, cada vez mais parece carecer de políticas afirmativas, no sentido mesmo e preciso de se promover o máximo de igualdade de oportunidades possível. A bem da verdade, não se trata aqui de propor que sejamos – “nós” e “a gente” – bonzinhos. A questão posta vai muito além da bondade e da também sempre necessária caridade: ela se afirma na profundidade do respeito pleno que todos merecem, no reconhecimento cabal do direito a ter direitos, na incontestável sabedoria de admitir que ninguém é mais por ter mais “esperteza”.

Em minha cabeça, também ainda ressoa o breve diálogo travado entre o menino e a mãe, captado enquanto meus passos seguiam adiante:

- Mãe, tu tá errada mesmo.

- Cala a boca, menino. E vê se anda logo. 

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Chico Araujo, poeta, ficcionista, compositor e intérprete, publica todas as quartas-feiras aqui no Evoé! O texto "Por que a gente é assim?" foi criado em 16/06/2017. Leia mais Chico Araujo em Vida, minha vida...

Um comentário:

  1. O cala a boca, menino, diz muito. Pobre criança, aprendendo torto a ser gente grande. Provavelmente em nome do atraso para o exame, ou da pressa, ela inadvertidamente marca o filho, que fica então aberto a um julgamento incisivo, é uma lição equivocada e desumana. O seu olhar, caro amigo escritor, e o seu texto, são maravilhosos. Parabéns!

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