quarta-feira, 26 de julho de 2017

Estou aqui, mas, você, onde está? - Chico Araujo

Sempre digo que comecei a escrever com algum viés literário por volta dos doze anos de idade. Pretensão minha? Não. Sempre se começa em algum ponto do tempo, uns muito cedo, outros um pouco mais adiante (Pedro Nava somente navegou nas marés da escrita memorialista – portanto, escrita com inspiração literária – após interromper a carreira de médico). Sempre é essa a referência que minha memória me dá, quando especula sobre esse meu início. Como a memória costuma ser seletiva, não é preciso esse marco.

Sei que no início tal escritura formalizou-se pela aventura em poemas expressivos, no sentido de efetivar uma conversa comigo mesmo, acerca do que eu pensava e sentia naquele período de pré-adolescência. Foi uma época de não revelação ao público; os escritos dormiam em cadernos que eu guardava, distantes dos olhos que não os meus.

Certamente me desnudava muito naqueles poemas, mas hoje não tenho nenhum documento daqueles meus registros poéticos iniciais, por decorrência de um fato que reputo como infeliz: quando contava quinze anos, por conta de um comentário zombeteiro, sarcástico de um amigo, motivado por impulso negativo destruí aqueles meus arquivos.

Durante algum tempo nada mais escrevi. Felizmente, para mim, somente durante algum tempo. Quando a escrita me lembrou de minha necessidade de escrever, retomei canetas, lápis, máquinas de datilografia e papéis, tendo o cuidado de não incluir aquele amigo na minha lista de possíveis leitores. Não tenho receio de crítica, porém tenho muito asco do sarcasmo, do deboche, do escárnio feito a questões que se despontam sérias.

Segui em frente, fui vivendo experiências muitas no universo das artes e hoje estou aqui, mas, você, onde está?

Essa pergunta é somente mais uma reflexão, leitor. Refletirá comigo?

Somente estou hoje aqui onde me encontro porque em concomitância à possibilidade do ato de escrever vivi a felicidade de me encontrar com atos de leitura. Bem, é certo que os atos de leitura começaram a se evidenciar um pouco antes, sendo logo seguidos de ações de escrita – decerto é exatamente assim que ocorre com todos cujo dia a dia se constrói também com a vivência desses dois fatores, envolvendo a literatura ou não.

Há muitos anos, portanto, se deu meu primeiro contato com a magia da leitura. Tive esse encontro ainda na minha infância e sei que por causa desse acontecimento sou hoje como sou. Creio mesmo que se não tivesse com ela me envolvido, se não houvesse sido envolvido por ela, tudo em minha existência teria se dado de maneira bastante diferente.

Em minhas palavras não se veja qualquer laivo de arrogância, pois, sinceramente, não tenho nenhuma intenção de arrogante ser. No entanto, constato, todo dia, diferenças fundamentais entre pessoas que leem e entre outras cuja distância da leitura é evidente. Nesse segundo grupo, o saber costuma apresentar sérias limitações. Em diversos aspectos.

Um deles se localiza no conhecimento acadêmico, ambiente onde transito por meio do experimento do processo ensino-aprendizagem. Quem por ele resolve transitar, necessita de ter domínio amplo sobre leitura – técnicas e métodos – e fluência no ato de ler. Sem amplo domínio sobre esse saber, como compreender as nuances do fazer(-se) acadêmico?

Outro aspecto relevante assenta-se e se corrobora na experiência da leitura do mundo que nos cerca. Isso necessariamente significa não dever, o leitor, limitar-se à compreensão de informações advindas das palavras utilizadas nos textos escritos e divulgados pelos mais variados meios de comunicação diariamente. Mais amplamente, o leitor deve compreender além delas, além dos seus significados mais corriqueiros, a fim de que possa alcançar todas as pretensas intenções de quem as usou no texto criado. A leitura de mundo, assim, soma o conhecimento do que foi escrito com os conhecimentos que o leitor já possui acerca de sua própria experiência de vida, individual ou coletivamente, possibilitando-lhe um saber mais amplo sobre o mundo em que vive.

Nesse segundo aspecto, insere-se, entre outras, a capacidade de ler as questões político-econômico-sociais as quais fazem funcionar a sociedade. Bem ou mal. Julgo ser de profunda valia a maior e mais qualificada capacidade leitora referente a essas questões; uma vez competente nessa necessidade, pode, o leitor, com segurança, decidir o que fazer para sua vida ser realmente da maneira como precisa e deseja que ela seja, pode perceber o que ações governamentais lhe concedem não como benefício social nem humano, mas como sofrimento e perda, imediata ou futura – dessa consciência pode construir seus mecanismos de defesa e de enfrentamento.

Se “ler é desvendar o mundo”, a qualidade desse desvendamento possibilita uma nova “escrita” para ele. Uma nova escrita que não se limita ao uso de palavras – embora elas estejam indelevelmente amalgamadas à existência de cada um, sendo alguns desse “cada um” penalizados frequentemente por não as dominarem: é de senso comum a verdade de que recai sobre analfabetos e pouco letrados a infame condição de seres com experiências sociais inferiores, estas, ainda, com profundo poder de limitar-lhes as condições econômicas. No fim das contas, tornam-se pessoas sem direitos por não os saberem, sem voz por não a saberem proferir e ecoar – cidadãos sem o experimento da cidadania, alijados de decisões e de soluções para sua própria existência.

Da posição social que ocupo e a partir da qual falo, ainda sonho com aquele dia em que as pessoas se olharão com olhar pleno de cidadania, cada uma reconhecendo na outra a exata medida do seja, respeitando e sendo respeitada, reconhecendo e sendo reconhecida pela importância de serem humanas, cidadãs conscientes de seus limites e de suas potencialidades.

Leitor, estou aqui, mas, você, onde está?

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Chico Araujo publica todas as quartas-feiras no Evoé! Estou aqui, mas, você, onde está? foi escrito em 24 de julho de 2017. Leia mais Chico Araujo em Vida, Minha Vida...

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